terça-feira, 22 de março de 2011

Eixo


Taí...nunca tinha olhado por esse ângulo...bonito...

O que eu fazendo olhando para cima? Agorinha mesmo eu tava vendo o chão...a muamba, os pés apressados, a sujeira dos dias corridos, aquela gente jogada pelos cantos...eu não tava no Largo da Carioca?

Não tinha visto que o céu tava azul, o rádio disse que ia chover...

Nunca olhava para o céu.

Talvez fosse mesmo como ela dizia: era limitado como um daqueles cavalos que usam vendas para tapar o mundo das distrações. Ou eram as distrações que o mantinham no eixo, mascarando as esquinas? A vida que conhecia era uma linha reta com poucas paradas. Onde estava? Era preciso fazer o que tinha que ser feito. Mais nada. Onde estava? Costas no chão, os pés para cima. O céu, agora, era o único norte possível.

Teria sido sempre assim? Não se lembrava de ser uma criança teimosa. E até lembrava de bastante coisa, só não confiava mais em nada. Chega um momento da vida que o sujeito já ouviu tanta história que não sabe mais qual é a sua. Todas eram...

...a turma da João da Mata, os bailes do Tijuca Tênis Clube, o Maracanã estalando de novo. Pelo menos a data tinha registro: o doce preto e branco dos anos 50. Só que ao vivo as pessoas tinham cor. A mesma cor que elas têm hoje, eu acho, mas com roupas melhores. Papai andava sempre de terno, bigode aparado e cabelo engomado. Um homem correto. De princípios e sapato engraxado... Ninguém mais engraxa os sapatos. É por isso que o mundo tá do jeito que tá. De cabeça para baixo...eu estou de cabeça para baixo...agora tem uma nuvem passando... qual é mesmo o nome? Nimbus? Cirrus? Não sabia. Não era bom de geografia. Porque tinha pensado nisso? Geografia. Eu aprendi isso na aula de geografia?

Já faz tanto tempo...

...fazia tempo que não esticava as pernas. Desde o nascimento da filha que não ia a lugar nenhum. Não era de hoje que a lombar reclamava de dar expediente todo dia naquela mesma cadeira, daquele mesmo escritório no centro da cidade. Os carros, os cruzamentos, os ambulantes. Trinta anos zanzando naquele labirinto e ainda sentia vertigem, fosse na amplidão da Presidente Vargas ou no aconchego do Arco do Teles. Meu Deus, que cansaço. Meu corpo não sente nada. Só cansaço. O céu continua lá. Quem é essa gente toda? Porque eles tão me olhando? O que eu fazendo aqui parado? Parado. Como estive a vida inteira. Parado. Os tornozelos algemados à mesa de costura de Vilma. O coração rabiscado nos desenhos coloridos de Letícia. Aquele era seu lugar. Estatelado no chão. Estacionado no silêncio.

Há quanto tempo estaria ali? Tempo suficiente para desbotar os sorrisos, isso era certo. E fazer dele, obsoleto. Tinha feito tudo por ela e agora não podia nem mais dar opinião. Lembrava os tempos mais duros de Méier, aquele quarto-e-sala que não batia uma brisa, o barulho do trem acordando o bebê. Ele e Vilma começando a vida, queimando todo fôlego que a juventude oferecia. Trabalhando sábado para crescer na firma. Queria poder dar de tudo para a filha. No fim do ano, perto do Natal, quando o clima era mais informal, levava Leticia para passar o dia. Ela quase sumia atrás daquela mesa cheia de papéis desimportantes. Rabiscava bloquinhos, mexia na máquina de escrever, lanchava pão francês com presunto que as secretárias iam comprar. E voltávamos de mãos dadas pelo metrô. Eu e aquele pingo de gente, as pernas tortinhas que nem o Garrincha. Como ela podia ser tão ingrata a ponto de não precisar mais dele? Quando foi que ela soltou minha mão? Que céu é esse que toma conta de mim?

A nuvem tinha ido embora e a luz, que antes apressava os passos daqueles para quem o tempo passava, agora parecia cansada. No azul escuro do céu, um sorriso cor de laranja rasgava a paisagem. Podia ouvir o que ele dizia: é hora de partir. O convite era sincero e afetuoso. E o abismo era seu para saltar. Não tenho medo - respondeu - mas fico triste de perder o fim da novela.