quarta-feira, 29 de julho de 2009

Conto de fodas

Era uma vez uma menina super bacana chamada Cinderela. Bonita, 20 poucos anos, ganhava a vida honestamente faxinando casa de família. Dormia no emprego. Menina simples. Jeans e camiseta.
Trabalhava duro e cumpria todas as tarefas do seu longo dia, ainda que, de vez em quando, tomasse umas paradas muito doidas e entrasse numa de conversar com os animais da varanda...

- E aí, bicho?! - dizia para o passarinho achando a maior graça no próprio trocadilho. - Tá tirando onda nos vocais hoje, hein?
- Pô, Cindi...esses farelos novos que os ratinhos arrumaram tão fazendo maravilhas pela minha arte.

Um dia, um amigo bichinha-assessor-de-imprensa ligou convidando para uma festa numa casa que, segundo ele, era um verdadeiro palácio. Como toda duranga, aceitou a boca livre sem pestanejar. Ligou para sua madrinha que era costureira no Projac e encomendou um figurino de núcleo rico da novela das oito. Fez a chapinha e foi.

Chegando lá, em meio a canapés e fluts gratuitas, tropeçou num mauricinho que a chamou para dançar. Dançaram. E carência seja dita, deu uns beijos no rapaz. Estavam no meio de uns amassos num canto remoto dos jardins quando ele começou com um papo brabo de que estava apaixonado e queria se casar.

Cindi, que já era rodada, rapidamente percebeu a deixa, deu um perdido no malandro e saiu a la leão da montanha. Esticou o braço e chamou um táxi, o melhor amigo da mulher solteira.
A caminho de casa, no entanto, percebeu que tinha perdido o celular.

- Merda...sequelei... paciência – pensou.

No dia seguinte, de ressaca, enquanto limpava os vidros da janela da sala pelo lado de fora, ouviu um comentários entre as filhas inúteis da sua patroa:

- ligou um cara perguntando se alguém aqui em casa perdeu o celular...

Cinderela, sempre de botuca ligada, pensou:

- Que sorte o taxisita deve ter achado!

As barangas continuaram o papo:

- O meu não perdi – resmungou uma das irmãs.
- Nem o meu. E eu já ia dizendo isso quando, por sorte, eu perguntei quem tava falando.
- Quem era? – respondeu a outra bocejando
- O Roberto Valentino!
- Quem?
- Aquele da novela das 7!
- Quem?
- Que faz o assistente da vilã!
- Mentira! E aí?
- Eu disse que tinha perdido, claro! Ele disse que vinha aqui trazer para mim, que eu tinha saído correndo, que a noite tinha sido incrível mas que tinha acabado cedo demais.

Cinderela quase caiu do nono andar.

- Puta, que mala, o cara vai entrar numa comigo...


Não deu duas horas o interfone tocou e Cinderela atendeu. Era a criatura:
- Sem grilo. Vou fumar um cigarro na área, o menino vai ver que se enganou e vai-se embora – pensou.

Foi, mas como tinha a audição bem treinada para ouvir as fofocas da sala de estar, acabou ouvindo a conversa. Dizia ele:

- Você foi no banheiro e sumiu. Seu celular ficou em cima da mesa.
- Ah...eu precisei pegar uma carona, não te achei mais.
- Engraçado, você é tão diferente do que eu lembrava...
- È que eu acabei de acordar, to toda desarrumada...
- Mais gordinha... – disse ele, deixando escapar o que devia ser só um pensamento.
- É que preto emagrece – respondeu a mocréia, enfurecida.
- Claro – respondeu o menino, se desculpando sem graça – eu também não devo estar parecendo nenhum príncipe.
- Mas foi divertido, não foi? A gente podia marcar um repeteco. – sugeriu a moça toda se querendo.
- Claro! Vamos marcar. Eu te ligo.

E antes que a irmã feia pudesse responder, o menino já tinha picado a mula se prometendo, de uma vez por todas, entrar para os alcoólicos anônimos.

Cinderela respirou aliviada:
- Ai, esse meu chame só me arruma encrenca...

Deu um último trago no cigarro, jogou a guimba pela janela e foi até a sala:

- Ô D. Celina, esse telefone aqui é tem dono? Tava precisando de um celular novo...

será que ela é?

Eu sou o meu humor.

Meu senso de humor inconsequentemente sacana.

falo demais, falo besteira e dou muito menos importância para a opinião dos outros do que os outros acham que eu deveria dar.

não tenho a menor relação com objetos ou bichos. Uso roupas até virarem panos de chão e tudo que me pertence é simbolicamente furado com brasa de cigarro.

Eu sou meu mau humor
Não brigo sério por nada. Mas brigo por nada o tempo todo.
Sou combativa com tudo. Dou patada sem querer.
Mas to sempre na boa.
Vai entender...

Eu sou um excesso de opiniões pós adolescentes.
hedonista, defensora do uso capião e fã da rebeldia
filha da sensatez do meu pai com a organização da minha mãe.
vergonhosamente intelectual, exaustivamente filosófica e dona de uma auto-estima cara de pau.

eu sou a antropofagia musical do alheio e a necessidade aristotélica da organização do caos.
um pouco melhor por causa do amor, um pouco mais livre por causa da dor, um pouco mais triste por causa do tempo.

Prosa demais para ser jornalista. Poética de menos para ser escritora.

sábado, 30 de maio de 2009

Atrás da porta

Estava escolhendo tomates quando viu D. Rosa na fila do açougue. Não via a velha vizinha desde que tinham se mudado para casa nova, sete anos atrás. Ela e Pedro.
Seu primeiro instinto foi puxar assunto. Por um momento, forçou-se a hesitar, fingindo não querer falar sobre Pedro. Mas rapidamente convenceu-se que deveria ser educada. Aproximou-se:
- Quem é vivo sempre aparece, não é, Dona Rosa?
- Ô minha querida, quanto tempo!
- O que faz por aqui?
- Vim almoçar na minha filha. Você sabe, mora aqui na rua de trás.
- Ah, sim. E como vai o netinho?
- Levado, menina, você precisa ver...E você, como está?
- Vou Indo...
Houve uma pausa. Teve impressão que Dona Rosa podia enxergar através daquela normalidade fingida. A velha mulata continuou:
- Fiquei muito triste quando soube de você e do Pedro.
- A senhora soube?
- Ele está fazendo um serviço lá para minha patroa. Não sabia. Perguntei de você e ele me contou.
- O que ele disse?
- Nada. Disse que tinha saído de casa.
- Foi melhor assim – falou, tentando sorrir – já estava cansada daquele imprestável.
Tinha sido em uma noite de semana. Ele chegara do trabalho calado mas o dia cansativo que tivera, pintando um apartamento grã-fino, ainda era melhor do que voltar para as reclamações dela.
Jantaram em silêncio. A carne era sempre meio sem sal mas o feijão era ótimo. Sentiria falta daquela comida.
- Coloquei uma carninha no feijão que eu sei que você gosta – dizia ela abraçando-o, por trás da cadeira, enquanto ele se servia.
Como diria para ela? Quando diria para ela? Dia sim, dia não chegava do serviço disposto a terminar tudo. Mas aquela refeição quente amornava a sua coragem. E de estômago cheio, ligava a televisão para se distrair.
Naquele dia, no entanto, não conseguia pensar em outra coisa. Já tinha avisado ao amigo Zé que talvez precisasse de uma cama para dormir. Sentado com ela ao seu lado no sofá só via o cabelo desgrenhado, a pele cinza e frouxa, o vestido sem graça. O que seria dela quando ele partisse?
Resolveu dormir para afastar os pensamentos. Foi até o quarto para por o pijama. Ela veio atrás:
- O que você tem hoje?
- Nada, só cansado.
- Foi alguma coisa que eu fiz?
- Não, to cansado. – respondeu irritado.
Ela ficou em silêncio por um tempo. Ele virou-se de costas, abotoando a camisa. Não viu quando ela respirou fundo antes de dizer o inevitável, já com os olhos marejados:
- Você vai me deixar, não é?
Aquelas palavras bateram nele com um misto de susto e alivio. Sua ausência tinha dito o que jamais teria sido capaz de expressar em palavras. Fechou os olhos por um momento e de repente foi tomado por uma ansiedade que implorava que ele não desperdiçasse aquela oportunidade. Virou-se. Não disse nada. A cabeça baixa e o silêncio confirmavam por ele.
- Porque?
- Porque não dá mais.
- Você tem outra?
- Não. Eu só não te amo mais.
Por um tempo ela pensou que ele estivesse falando outra língua. Não fazia sentido. Quando finalmente compreendeu o que ele havia dito, o choro que engasgava sua garganta explodiu.
- Você não pode fazer isso! – praguejou, se jogando contra ele - Não pode! Não pode! Não pode! – continuou.
Mas já não tinha mais ele. Ao invés de ampara-la em seu desespero, ele permaneceu imóvel, os braços primeiro grudados ao lado do corpo, depois tentando desvencilhar-se. Ela ia caindo lentamente, perdendo as forças a cada soluço até sentar-se no chão, desolada.
Ele teve pena. Mas felizmente era tarde demais para voltar atrás. Deu alguns passos ao redor dela, pegou as roupas do dia, que estavam jogadas numa cadeira na quina do quarto, e saiu.
Ela não conseguia parar de chorar. Achava que nunca mais conseguiria. Ele tinha parado na sala por um instante para trocar os pijamas pela calca jeans. Mesmo sem olhar para trás, ela sentia que ele ainda não tinha ido embora. A casa ainda estava aquecida pelo calor de seu corpo. Estaria ele hesitante? Aquele pensamento encheu-a de esperança.
Parando de chorar por um instante, ela pegou as últimas forças que tinha e engatinhou até a porta do quarto. Através da moldura da porta, tudo que via era o lado esquerdo do seu corpo. Tinha mudado de roupa mais ainda estava descalço. Ele se arrastou mais um pouco, chamando-o baixinho. Ele enfiou os pés nos sapatos largados ao lado da mesa de jantar e saiu pela porta da rua.
Ela explodiu. Os braços já não viam motivo para sustentá-la. Deixou seu corpo cair no tapete atrás da porta. Pedro tinha ido embora.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Os filmes dizem tudo que os pais não têm tempo para ensinar

Não tinha coragem de se largar de vez, sem cordas nem pinos, no abismo da esquizofrenia, mas, por vezes, sentia que seu mundo era o do lado de lá.
Durante anos, aninhou seus desejos, inocente e inconsequentemente, em narrativas que não eram suas. E espelhou as suas histórias nos predicados de outros sujeitos.
Órfã que era, mergulhou no mundo de fantasia de uma história sem fim e encontrou o tesouro de Willi “O Caolho”. Se apaixonou pela primeira vez por um homem mais velho que usava chapéu e manejava um chicote como ninguém. E começou a gostar de História passeando pelos séculos num DeLoren voador.
Compulsiva desde criança, viciou-se, muito cedo, na sensação de viver através do transe hipnótico das imagens em movimento.
Da fantasia infantil, passou direto às paixões da juventude e, aos
16 anos, vivia a vida de cão de Ângela Chase. Inadequada e perdida na tentativa de conciliar a busca pela sua verdade com o pertencimento de formas, gostos e amizades que lhe cobravam artificialidades um tanto inoportunas.
Todos os dias, depois do colégio, gastava suas tardes escrevendo e reescrevendo, de olhos fechados, aventuras amorosas com Jordan Catalano, a versão grunge do príncipe encantado dos anos 90, com seus cabelos compridos e sua camisa de flanela à la Kurt Cobain.
Com o passar dos anos e a ampliação dos conflitos, virou Lelaina Pierce, uma mulher de 23 anos, recém formada em jornalismo catando seu lugar no mercado, entre a manutenção do sonho e cobrança do mundo material.
Lelaina era documentarista mas ganhava a coca light de todas as horas trabalhando em um cargo porcaria num programa de televisão. Desvalorizada, sub-aproveitada, sem dinheiro e tentando entrar no mundo dos adultos sem perder a ternura.
Não conseguiu. E, logo era a moça perdida na tradução de letreiros japoneses, olhando pela janela a paisagem desconhecida da metrópole que a engolia, sem reconhecer, nem nos rostos familiares, uma nesga de sol que acalentasse a esperança.
Inspirada na dor de Charlotte, virou a vida do avesso, questionando eu, tu, eles e todos os nós embaraçados das identidades em transformação.
Jogou fora tudo que tinha como certo e se viu soterrada no arrependimento. Respirou fundo e se organizou para resgatar o que ainda servia. Foi a Montauk, de suéter laranja e cabelos vermelhos, e esperou. E com o pé fincado na areia, viu surgir novamente o brilho eterno das lembranças que ainda seriam construídas.
Agora, chegando aos 30, com Saturno a deixando em paz, pretendia resgatar um pouco de tudo: a fantasia da infância, a inspiração da adolescência, a vontade da juventude e a consciência de que crises acontecem. Iria, tranquilamente, esperar pelo próximo filme que mudaria a sua vida.