Não tinha coragem de se largar de vez, sem cordas nem pinos, no abismo da esquizofrenia, mas, por vezes, sentia que seu mundo era o do lado de lá.
Durante anos, aninhou seus desejos, inocente e inconsequentemente, em narrativas que não eram suas. E espelhou as suas histórias nos predicados de outros sujeitos.
Órfã que era, mergulhou no mundo de fantasia de uma história sem fim e encontrou o tesouro de Willi “O Caolho”. Se apaixonou pela primeira vez por um homem mais velho que usava chapéu e manejava um chicote como ninguém. E começou a gostar de História passeando pelos séculos num DeLoren voador.
Compulsiva desde criança, viciou-se, muito cedo, na sensação de viver através do transe hipnótico das imagens em movimento.
Da fantasia infantil, passou direto às paixões da juventude e, aos
16 anos, vivia a vida de cão de Ângela Chase. Inadequada e perdida na tentativa de conciliar a busca pela sua verdade com o pertencimento de formas, gostos e amizades que lhe cobravam artificialidades um tanto inoportunas.
Todos os dias, depois do colégio, gastava suas tardes escrevendo e reescrevendo, de olhos fechados, aventuras amorosas com Jordan Catalano, a versão grunge do príncipe encantado dos anos 90, com seus cabelos compridos e sua camisa de flanela à la Kurt Cobain.
Com o passar dos anos e a ampliação dos conflitos, virou Lelaina Pierce, uma mulher de 23 anos, recém formada em jornalismo catando seu lugar no mercado, entre a manutenção do sonho e cobrança do mundo material.
Lelaina era documentarista mas ganhava a coca light de todas as horas trabalhando em um cargo porcaria num programa de televisão. Desvalorizada, sub-aproveitada, sem dinheiro e tentando entrar no mundo dos adultos sem perder a ternura.
Não conseguiu. E, logo era a moça perdida na tradução de letreiros japoneses, olhando pela janela a paisagem desconhecida da metrópole que a engolia, sem reconhecer, nem nos rostos familiares, uma nesga de sol que acalentasse a esperança.
Inspirada na dor de Charlotte, virou a vida do avesso, questionando eu, tu, eles e todos os nós embaraçados das identidades em transformação.
Jogou fora tudo que tinha como certo e se viu soterrada no arrependimento. Respirou fundo e se organizou para resgatar o que ainda servia. Foi a Montauk, de suéter laranja e cabelos vermelhos, e esperou. E com o pé fincado na areia, viu surgir novamente o brilho eterno das lembranças que ainda seriam construídas.
Agora, chegando aos 30, com Saturno a deixando em paz, pretendia resgatar um pouco de tudo: a fantasia da infância, a inspiração da adolescência, a vontade da juventude e a consciência de que crises acontecem. Iria, tranquilamente, esperar pelo próximo filme que mudaria a sua vida.
2 comentários:
Que bom que vc voltou, Dona Baratinha...
Seus textos me deixam sem ar!
Beijos
Dona Baratinha...
Espero ansiosamente pela próximo filme, recheado de emoção a 24 quadros por minuto, que não seja blockbuster mas que nos leve em aventuras imperdíveis, ações espetaculares e sonhos impossíveis...
Show !
beijo
Ricardo Pereira
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