Era sempre a mesma calmaria, arranhada
pelo sussurro ranzinza do ventilador. Vez por outra, passos mais reforçados
produziam um levantar de olhos instantâneo. Heresia. Espaço sacrossanto do
silêncio.
Os donos
das solas inconvenientes encaravam o protesto mudo com ousadia. Não havia nada
que pudessem fazer, estando eles a deslocar-se para melhor atender aqueles
mal-agradecidos. Se queriam ter acesso aos documentos que lidassem com algumas
onomatopéias. E agradecessem pelo serviço.
Trabalhando
naquele setor, o de consulta aos arquivos da Biblioteca Nacional, haviam seis
solas de sapato igualmente ruidosas. Duas delas, um par de tamancos caramelo,
desprendiam - se dos pés inchados a cada passo. Eram lentos e pesados, sem a
menor pressa de agradar os olhos petulantes. Na parede, um relógio de ponteiro
avisava a hora. Seus olhos, por trás dos óculos de armação precária, liam
quatro da tarde. uma hora para o final de expediente. Sexta feira. A um passo
do paraíso.
Outro par, de couro preto tradicional e
polido, sentados numa mesa ao lado da janela, mantinham-se batucando no ritmo
da ansiedade. Mas quando o telefone tocava, era um par de tênis velhos que
corria para abafar o alarde e restituir a calmaria perene. Por fim, e
raramente, davam o ar de sua graça, o par de sapatos cinzas do andar de
cima. De bico fino, apertando os calos e
apagando cigarros com classe.
Nesse dia eles vieram. Anunciados pelo
toque do elevador. Rebolativos, cheios de confiança e arrogância que só a
ilusão de poder confere aos passos. E aproximação do batuque dos saltos alterou
significativamente a sinfonia das seis demais solas. Os tamancos caramelos
tomavam para si o ritmo acelerado dos sapatos de couro que por sua vez
interrompiam a batida para por de pé todo o peso que carregavam. Os tênis
aceleravam o passo para mostrar serviço e os olhos, mais uma vez, punham-se de
sentinela do marasmo auditivo.
Envolvido
em um falso cabelo ruivo, o rosto dos tamancos caramelos fechava-se.
Os lábios comprimiam-se formando
um bico que era acompanhado de um franzir de sobrancelhas. As sobrancelhas dos
sapatos de couro, por sua vez, se levantavam complementando os olhos
arregalados e curiosos que esperavam impacientes a chegada daquele barulho cada
vez mais próximo. O ruído amedrontava os olhos piscantes que guiavam os tênis
em um ziguezague enlouquecido. Suas mãos, suadas, tremiam organizando a
papelada. Antes tivesse as colocado em serviço mais cedo. Os braços resolveram
então dar uma mão mas se eram fortes, eram também desajeitados e logo a pilha
de pastas que estavam carregando encontrava o bico fino dos sapatos cinzas no
chão.
O par de
tênis recuou dois passos, de cabeça baixa. Igualmente olhando para o chão
estava a cabeça dos sapatos finos mas não em atitude subalterna. Os olhos
miravam a bagunça de maneira fixa e repressiva até acompanharem o movimento
vertical do rosto medroso a ser
responsabilizado.
Nenhuma
palavra foi dita. Em um movimento cumprido de perna, os sapatos cinza deixaram
para trás as pastas e seguiram em direção à mesa debaixo da qual descansavam
agora os exaustos pés inchados de tamancos caramelo. As mãos claras mas não
muito jovens do sapato fino punham sobre a mesa um papel datilografado. Os
olhos míopes dos tamancos caramelo espremiam-se para ler o que estava escrito.
os óculos haviam sido retirados em um tentativa inútil de vaidade. o cérebro já
sabia do que se tratava. A intenção da leitura era manter o dignidade e evitar
o contato visual com aquele permanente louro de raízes pretas e sapatos finos.
Os sapatos
de couro permaneciam alertas mas estáticos. As mãos, que não pareciam caber em
lugar nenhum, finalmente uniram-se na altura do cóccix com intenção de não
denunciarem o resto do corpo que, pelo menos até ali, se comportava tão bem.
Uma vez o
estrago feito, o corpo agitado que os tênis carregavam foi ralentando seus
movimentos. Na verdade, a pausa teve como objetivo a fixação dos olhos no
embate silencioso que vinha sendo travado entre os dois pares de sapatos
femininos.
Terminada
a leitura, o cabelo mal pintado de ruivo ergueu a face enrugada e, finalmente,
encarou o batom rosa, do tipo 24horas, que delineavam um rosto sério mas
satisfeito. Os dedos ágeis com unhas, descascadas em vinho, tatearam
decididamente e, sem por um minuto desviar os olhos míopes do permanente louro,
rabiscaram a assinatura que, há anos, estavam habituados a escrever. Depois
livraram-se da caneta em um gesto brusco e repousaram novamente na madeira.
A cabeça
também exaurida curvou-se contemplando os dedos preguiçosos. E lentamente seus
olhos assistiram o papel ser retirado de seu campo de visão.
Antes de
dar meia volta, em direção a porta, os sapatos cinzas pararam intencionalmente
no ângulo dos sapatos de couro causando um sobressalto. As mãos, antes presas
no cóccix, se soltaram e os braços alinharam-se ao restante do tronco vestidos
com uma camisa suada, quadriculada em azul, que, por causa do calor, tinha seus
dois primeiros botões desabotoados deixando a mostra o cabelo grisalho do
peito. Os lábios esboçaram um sorriso que só foi retribuído a medida que os
sapatos cinzas reiniciavam sua meia volta em direção a porta, na intenção de
esconder qualquer tipo de cumplicidade dos mais do que nunca cansados e míopes
olhos dos sapatos caramelo.
Aqueles
olhos cansados acompanharam aliviados os sapatos de couro preto seguirem os
sapatos de bico fino até depois da porta e puderam, finalmente, soltar uma
lágrima raivosa.
O par de
tênis pôs, por fim, ereto aquele corpo troncho e teve o ímpeto de aproximar-se
da mesa mas conteve-se amedrontado diante da repentina volta dos sapatos de
couro.
Ignorando
a presença alheia, os tamancos caramelo ergueram-se de uma maneira bem mais
ágil que o normal. As mãos morenas com unhas descascadas pegavam meia dúzia de
coisas que iam sendo jogadas na bolsa de couro falso marrom. E, poucos minutos
depois, lá iam eles embora, cruzando a porta de saída para nunca mais voltar.
Na
parede, o relógio de ponteiro marcava Quatro e Meia, meia hora para o final do
expediente. Os sapatos de couro sentaram-se novamente, dessa vez, mais serenos.
Os olhos puseram-se a examinar uma série de documentos, uma vez que era preciso
voltar ao trabalho. O tênis, sempre desnorteados, ensaiava passos receosos em
direção ao companheiro que restara mas com a cabeça sempre checando a porta.
Quando
chegou perto, esperou que os olhos agora trabalhadores encontrassem os seus,
preocupados. Ficou ali um tempo e teve a nítida sensação que estava sendo
propositalmente ignorado. Começou a mexer o corpo em um misto de impaciência e
esperança que o outro se rendesse. Nenhuma resposta. Aquilo já estava passando
dos limites. Todos os seus sentidos demonstravam ansiedade. Os pés batucavam,
as mãos limpavam a testa suada, os olhos piscavam. Estava sem controle até que
em um ato de desespero:
--Mas o
que foi que ela fez? – perguntou aos berros
Os
sapatos de couro puseram-se de pé e caminharam até os arquivos para continuar o
seu trabalho, em tom de represália. Mesmo sem virar a cabeça, o par de tênis
era capaz antecipar o protesto dos olhos sentinelas do barulho. Cometera o
pecado original. Preparou-se, então para o apedrejamento:
--
Shiiiiii!!!!!!!
E
sentou-se para descansar.
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