quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Batuque de repartição



Era sempre a mesma calmaria, arranhada pelo sussurro ranzinza do ventilador. Vez por outra, passos mais reforçados produziam um levantar de olhos instantâneo. Heresia. Espaço sacrossanto do silêncio.
            Os donos das solas inconvenientes encaravam o protesto mudo com ousadia. Não havia nada que pudessem fazer, estando eles a deslocar-se para melhor atender aqueles mal-agradecidos. Se queriam ter acesso aos documentos que lidassem com algumas onomatopéias. E agradecessem pelo serviço.
            Trabalhando naquele setor, o de consulta aos arquivos da Biblioteca Nacional, haviam seis solas de sapato igualmente ruidosas. Duas delas, um par de tamancos caramelo, desprendiam - se dos pés inchados a cada passo. Eram lentos e pesados, sem a menor pressa de agradar os olhos petulantes. Na parede, um relógio de ponteiro avisava a hora. Seus olhos, por trás dos óculos de armação precária, liam quatro da tarde. uma hora para o final de expediente. Sexta feira. A um passo do paraíso.
 Outro par, de couro preto tradicional e polido, sentados numa mesa ao lado da janela, mantinham-se batucando no ritmo da ansiedade. Mas quando o telefone tocava, era um par de tênis velhos que corria para abafar o alarde e restituir a calmaria perene. Por fim, e raramente, davam o ar de sua graça, o par de sapatos cinzas do andar de cima.  De bico fino, apertando os calos e apagando cigarros com classe.
Nesse dia eles vieram. Anunciados pelo toque do elevador. Rebolativos, cheios de confiança e arrogância que só a ilusão de poder confere aos passos. E  aproximação do batuque dos saltos alterou significativamente a sinfonia das seis demais solas. Os tamancos caramelos tomavam para si o ritmo acelerado dos sapatos de couro que por sua vez interrompiam a batida para por de pé todo o peso que carregavam. Os tênis aceleravam o passo para mostrar serviço e os olhos, mais uma vez, punham-se de sentinela do marasmo auditivo.
            Envolvido em um falso cabelo ruivo, o rosto dos tamancos caramelos fechava-se.
Os lábios comprimiam-se formando um bico que era acompanhado de um franzir de sobrancelhas. As sobrancelhas dos sapatos de couro, por sua vez, se levantavam complementando os olhos arregalados e curiosos que esperavam impacientes a chegada daquele barulho cada vez mais próximo. O ruído amedrontava os olhos piscantes que guiavam os tênis em um ziguezague enlouquecido. Suas mãos, suadas, tremiam organizando a papelada. Antes tivesse as colocado em serviço mais cedo. Os braços resolveram então dar uma mão mas se eram fortes, eram também desajeitados e logo a pilha de pastas que estavam carregando encontrava o bico fino dos sapatos cinzas no chão.
            O par de tênis recuou dois passos, de cabeça baixa. Igualmente olhando para o chão estava a cabeça dos sapatos finos mas não em atitude subalterna. Os olhos miravam a bagunça de maneira fixa e repressiva até acompanharem o movimento vertical  do rosto medroso a ser responsabilizado.
            Nenhuma palavra foi dita. Em um movimento cumprido de perna, os sapatos cinza deixaram para trás as pastas e seguiram em direção à mesa debaixo da qual descansavam agora os exaustos pés inchados de tamancos caramelo. As mãos claras mas não muito jovens do sapato fino punham sobre a mesa um papel datilografado. Os olhos míopes dos tamancos caramelo espremiam-se para ler o que estava escrito. os óculos haviam sido retirados em um tentativa inútil de vaidade. o cérebro já sabia do que se tratava. A intenção da leitura era manter o dignidade e evitar o contato visual com aquele permanente louro de raízes pretas e sapatos finos.
            Os sapatos de couro permaneciam alertas mas estáticos. As mãos, que não pareciam caber em lugar nenhum, finalmente uniram-se na altura do cóccix com intenção de não denunciarem o resto do corpo que, pelo menos até ali, se comportava tão bem.
            Uma vez o estrago feito, o corpo agitado que os tênis carregavam foi ralentando seus movimentos. Na verdade, a pausa teve como objetivo a fixação dos olhos no embate silencioso que vinha sendo travado entre os dois pares de sapatos femininos.
            Terminada a leitura, o cabelo mal pintado de ruivo ergueu a face enrugada e, finalmente, encarou o batom rosa, do tipo 24horas, que delineavam um rosto sério mas satisfeito. Os dedos ágeis com unhas, descascadas em vinho, tatearam decididamente e, sem por um minuto desviar os olhos míopes do permanente louro, rabiscaram a assinatura que, há anos, estavam habituados a escrever. Depois livraram-se da caneta em um gesto brusco e repousaram novamente na madeira.
            A cabeça também exaurida curvou-se contemplando os dedos preguiçosos. E lentamente seus olhos assistiram o papel ser retirado de seu campo de visão.
            Antes de dar meia volta, em direção a porta, os sapatos cinzas pararam intencionalmente no ângulo dos sapatos de couro causando um sobressalto. As mãos, antes presas no cóccix, se soltaram e os braços alinharam-se ao restante do tronco vestidos com uma camisa suada, quadriculada em azul, que, por causa do calor, tinha seus dois primeiros botões desabotoados deixando a mostra o cabelo grisalho do peito. Os lábios esboçaram um sorriso que só foi retribuído a medida que os sapatos cinzas reiniciavam sua meia volta em direção a porta, na intenção de esconder qualquer tipo de cumplicidade dos mais do que nunca cansados e míopes olhos dos sapatos caramelo.
            Aqueles olhos cansados acompanharam aliviados os sapatos de couro preto seguirem os sapatos de bico fino até depois da porta e puderam, finalmente, soltar uma lágrima raivosa.
            O par de tênis pôs, por fim, ereto aquele corpo troncho e teve o ímpeto de aproximar-se da mesa mas conteve-se amedrontado diante da repentina volta dos sapatos de couro.
            Ignorando a presença alheia, os tamancos caramelo ergueram-se de uma maneira bem mais ágil que o normal. As mãos morenas com unhas descascadas pegavam meia dúzia de coisas que iam sendo jogadas na bolsa de couro falso marrom. E, poucos minutos depois, lá iam eles embora, cruzando a porta de saída para nunca mais voltar.
            Na parede, o relógio de ponteiro marcava Quatro e Meia, meia hora para o final do expediente. Os sapatos de couro sentaram-se novamente, dessa vez, mais serenos. Os olhos puseram-se a examinar uma série de documentos, uma vez que era preciso voltar ao trabalho. O tênis, sempre desnorteados, ensaiava passos receosos em direção ao companheiro que restara mas com a cabeça sempre checando a porta.
            Quando chegou perto, esperou que os olhos agora trabalhadores encontrassem os seus, preocupados. Ficou ali um tempo e teve a nítida sensação que estava sendo propositalmente ignorado. Começou a mexer o corpo em um misto de impaciência e esperança que o outro se rendesse. Nenhuma resposta. Aquilo já estava passando dos limites. Todos os seus sentidos demonstravam ansiedade. Os pés batucavam, as mãos limpavam a testa suada, os olhos piscavam. Estava sem controle até que em um ato de desespero:
            --Mas o que foi que ela fez? – perguntou aos berros
            Os sapatos de couro puseram-se de pé e caminharam até os arquivos para continuar o seu trabalho, em tom de represália. Mesmo sem virar a cabeça, o par de tênis era capaz antecipar o protesto dos olhos sentinelas do barulho. Cometera o pecado original. Preparou-se, então para o apedrejamento:
            -- Shiiiiii!!!!!!!

            E sentou-se para descansar.

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